Texto originalmente postado no site do Com+, em 17 de Agosto de 2020, em parceria com João Francisco Raposo.
Por Carolina Frazon Terra e João Francisco Raposo (*)
Começamos deixando claro que, como grupo e indivíduos, não apoiamos atitudes de preconceito e desrespeito contra qualquer ser humano, nem a de midiatizar, “celebritizar” e publicizar a violência e o deboche como forma de entretenimento na rede.
Nosso objetivo aqui é refletir, de modo breve e sob aspectos da Comunicação, como a cena publicada no app TikTok envolvendo a dona de um restaurante em Miami e o artista Romero Britto, em agosto de 2020, se tornou o buzz do momento, especialmente no Brasil, e o que podemos compreender a partir disso.
Sobre o caso: a americana Faye Pindell trabalha em uma galeria de arte em Miami. Ela publicou em seu Tik Tok um vídeo no qual Romero Britto atendia fãs que compraram seus trabalhos de arte. Uma mulher, gerente de um restaurante local no qual Britto esteve, começa a gritar de repente e a reclamar que ele havia sido demasiado rude e desrespeitoso com seus funcionários. Bastante exaltada, ela quebra uma obra de arte de sua própria coleção (e autoria de Britto) no valor de quase R$ 30 mil como forma de retaliação. O vídeo viralizou rapidamente nas redes, ganhando o debate público e os trends das plataformas de mídias sociais.Não por acaso, o brasileiro humilhado esteve também na capa da Folha de S.Paulo do sábado, 15/08.
Imediatamente após o vídeo ser publicado e viralizado, o artista sofreu seu “cancelamento”, uma atitude que, em linhas gerais, exclui da sociedade determinada pessoa ou grupo, fazendo com que eles “deixem de existir” digitalmente pelo unfollow e pela “shit storm” – tempestade de indignação virtual – com comentários e xingamentos como formas de punição e protesto. Uma atualização do “vigiar e punir” de Foucault, agora transposto à rede como a ágora digital do contemporâneo.
Sobre a cultura do cancelamento, Beth Saad, no site do Com+, reforçou: “Uma escalada talvez sem volta, uma alteração radical do entendimento da subjetividade e da alteridade, um outro conjunto de valores sociais e uma complexa ressignificação da esfera pública”. Isso explica (e muito) como o assunto se tornou destaque, caindo nas (des)graças da opinião pública digital, que tentou cancelar o artista. Mas quais são as ressignificações do nosso tempo e o que elas favorecem (ou não)?
Como sociedade e como comunicadores nos perguntamos também qual o propósito por trás da exposição do ocorrido a milhares de pessoas: “justiça” ou um desejo narcísico e individualizado de ganhar mídia espontânea nas redes? E em termos de imagem e reputação será que houve, de fato, algum ganho além do burburinho digital?
Do ponto de vista das teorias da Comunicação contemporâneas, estamos lidando com um cenário de extrema volatilidade (algo muito trabalhado por autores como Han), midiatização profunda (tema de estudiosos como Hepp, Hjarvard, van Dijck) e plataformização (van Dijck) de tudo que fazemos e vivemos. A volatilidade, a velocidade e o efêmero são a principal tônica das redes e de nossa existência “posto, logo existo”. São o enxame digital, como pontuou Han (2018), que transforma nossos comportamentos, percepções, sensações, pensamentos e toda nossa vida em conjunto de modo inconsciente e midiatizado.
Por midiatização profunda, Hepp (2020) compreende que seja um estágio avançado da midiatização, no qual todos os elementos do nosso mundo – social, cultural, econômico – estão profundamente subordinados e ligados às mídias e suas infraestruturas. E tudo isso se confirma pelo extensivo uso dos apps e plataformas de mídias sociais – Instagram, Facebook, Twitter e TikTok, dentre outras – como ferramentas de base para angariar notoriedade, alcance, relacionamento e visibilidade, especialmente em tempos de coronavírus e distanciamento social.
Quem filmou (e postou) toda a cena estava apenas registrando o “meet and greet” do artista em sua galeria ou, de certa forma, dando força ao movimento da gerente do restaurante?
Podemos perceber também a forte presença da plataformização da nossa sociedade. Para van Dijck (2019), “refere-se à inextricável relação entre plataformas online e estruturas societais”. Nosso transporte, saúde, educação e até o jornalismo têm hoje se tornado quase inteiramente dependentes das infraestruturas digitais de grandes empresas de plataformas para se relacionar com suas audiências por meio da criação e da distribuição conteúdo.
E quando um vídeo amador postado nas redes ganha a capa de um dos principais jornais do país, se inserindo também na cultura de memes e nas conversas, podemos perceber como a propagação (seja ela de conteúdos positivos ou não) é capaz de fazer nosso mundo midiatizado, plataformizado e volátil girar em torno do “clique”. Fãs e haters do artista alimentaram a “máquina do ódio” das redes sociais espalhando e postando sobre o assunto em seus perfis e grupos de Whatsapp.
É fato que um conteúdo negativo hoje se propaga bem mais rápido na rede que qualquer outro e talvez isso justifique (e ao mesmo tempo explique) o que gostamos de consumir e a sociedade na qual nos transformamos. Em texto anterior, discutimos como, enquanto comunicadores, não planejamos ações estratégicas que contribuam para que os públicos tenham percepções negativas ou ruins (o que chamamos de Bad PR). Mas hoje organizações, empresas, entidades e celebridades parecem utilizar bastante da estratégia como uma ação oportunista, apesar da possibilidade de consequências desastrosas para reputação e imagem.
Romero Britto postou em sua conta no Instagram um comunicado dizendo que a internet pode gerar drama, confusão e julgamentos, e que o vídeo em questão é de 2017, o que causa ainda mais estranheza sobre sua origem e intuito. Não somos advogados nem juristas, mas acreditamos que o objetivo real da divulgação passa longe do “fazer justiça”, pura e simplesmente (até porque não seria a forma nem o canal mais indicados pra isso) e apontar “culpados”. Como bem disse nossa colega Daniela Oswald Ramos aqui no site do Com+, “o ato alimenta o ciclo de trazer fama ao restaurante de Madelyne, no qual Britto teria humilhado sua equipe, motivo pelo qual ela resolve ter agido da forma que agiu (pensar em retratação do artista frente a sua equipe, em privado, nem pensar).”
Assim, pensamos que o foco estratégico da postagem – três anos depois no TikTok – foi mesmo gerar boca a boca e visibilidade em forma de likes, comentários e memes que dessem força à história e à imagem de alguém: do restaurante/sua gerente ou (mais incrível ainda) de Britto, mesmo que pela via negativa. Mas ao nosso ver, o “falem mal, mas falem de mim”, apesar do retorno e do buzz momentâneos, pode ser um caminho de oportunismo arriscado, com mais perdas que ganhos.
Para nós, o burburinho digital pela vida negativa não é capaz de construir diálogos, oportunizar relacionamentos, nem imagem positiva e empática a longo prazo, uma vez que usurpa o uso do ferramental disponível e não faz parte do escopo da Comunicação. Não da que conhecemos… Estar “na boca”(ou na tela) do povo por estar não é garantia de resultados de reputação sólidos nem duradouros (e ainda bem!). O trabalho estratégico de presença digital nas redes passa longe de modismos e volatilidades, e respeita também preceitos de ordem ética.
Para além da Comunicação e independentemente de se gostar ou não de alguém, de sua “arte” ou de suas atitudes… Passamos agora por ressignificações profundas como sociedade; precisamos estar atentos a tais mudanças, pois fazemos parte delas e somos capazes de escolher os rumos da humanidade (sempre fomos). Vivemos um momento único no qual a transformação coletiva depende de cada um (não, isso não é um clichê) e, apesar das escolhas individuais pagaremos “o preço” em conjunto por nossos valores, exemplos e comportamentos.
Depois não adianta reclamar da política nem da história que será contada (ou não) nos livros de História…
(*) Carolina Frazon Terra é pós-doutora em Comunicação pela ECA/USP, pesquisadora no grupo Com+ e professora na Faculdade Cásper Líbero, ESPM e ECA-USP. João Francisco Raposo é especialista em Comunicação Digital, doutorando e professor na ECA/USP, e pesquisador no grupo Com+.